
Transexualidade: vida, preconceito e mercado de trabalho
Com histórias marcantes, homens e mulheres transexuais narram suas trajetórias de luta em nome do direito de existir

Por Ana Carolina Alves, Fernanda Lopes, Giovanna Bento, Karen Vieira e Tamiris Martins
O ano era 2009. Lembro-me dos gritos da minha mãe ao sair do consultório. Não entendia exatamente o que estava acontecendo, mas sabia que havia algo errado. A conversa com a psicóloga com certeza não foi das melhores. Eu nunca soube o que foi dito naquela sala, mas hoje imagino. A reação dela indicava que a doutora lhe dissera o que eu vinha tentando mostrar já há muitos anos.
Eu estava me relacionando virtualmente com uma mulher. Ela pensou que eu fosse um homem, não tive coragem de desmentir. Não fossem as ligações que duravam horas registradas na conta de telefone, minha mãe talvez nunca descobrisse. Quando descobriu, não pensou duas vezes: fui levado ao consultório, para ser “tratado” se possível.
A psicóloga fez inúmeras perguntas, sempre buscando entender o porquê de eu questionar tanto o comportamento que aparentemente deveria ter. No fundo eu já sabia a resposta, mas não sabia como colocar em palavras tudo o que sentia. Felizmente no fim da consulta ficou claro qual a questão a ser resolvida.
A história de Rafael é uma realidade vivida por milhares de homens e mulheres transexuais brasileiros. A primeira barreira é imposta pela sociedade. Fazer parte de um grupo que não se encaixa nos padrões sociais com os quais estamos habituados é desafiador. O preconceito e a discriminação são constantes, colocando obstáculos cada vez maiores para aqueles que lutam por seu espaço como cidadãos.
DESCOBERTA
A descoberta da transexualidade de Alexandre Porfírio, 23, aconteceu pela insistência de uma mulher com quem teve um relacionamento e que sempre falava sobre seu jeito de agir e de se vestir. “Em certo momento ela me apresentou a questão da transexualidade, fui pesquisar e me identifiquei. A partir daí, comecei a pensar em situações pelas quais passei na infância e no início da minha adolescência e percebi que me encaixava naquilo. Foi como se uma luz se acendesse na minha cabeça”.
Por toda a sua vida, Thais Robba, 30, sempre foi sendo empurrada para tudo: escola, faculdade, trabalho. Depois de muita conversa com sua esposa, Pamela, chegou à conclusão de que não se encaixava mais no masculino. “Foi quando dei o primeiro passo para me descobrir. Continuei pesquisando sobre o assunto e vendo como me sentia em relação às coisas. Em uma dessas pesquisas, procurei no Google ‘como saber se eu sou trans’ e pensei: as pessoas cis não pesquisam esse tipo de coisa, elas não se interessam por isso”.
Durante sua infância e adolescência, a programadora Erica Prieto, 27, pensava em como seria ser mulher. Se pudesse, até trocaria de gênero. “Só que essa discussão sobre transgeneridade não era tão forte na época e eu nem sabia que isso era possível. Acabei enterrando essas vontades e pensamentos, até esquecer que um dia existiram”.
Alexandre não entendia por que havia diferença entre o que ele e seu irmão ganhavam. “Tudo o que ele ganhava eu queria. Podia ser um shorts ou um brinquedo masculino, não entendia por que eu não ganhava e ele sim. Tudo o que era visto como feminino eu não queria, mas às vezes usava para agradar minha mãe, nunca gostei. Pra mim não tinha designação”.
Existem aqueles que defendem que as pessoas se tornam transexuais, que deliberadamente escolhem identificar-se com o sexo oposto. Pesquisas na área da psicologia dizem que, ao contrário, essa condição origina-se no nascimento. Ao longo da vida o indivíduo trans passa a compreender as razões pelas quais não se sente confortável com seu corpo ou por que se encaixar nos padrões impostos pela sociedade é sempre tão exaustivo. A transexualidade é uma condição real e recorrente.
Se Rafael, Alexandre, Thais e Erica viveram um verdadeiro conflito com o seu corpo na juventude, uma das muitas razões foi a falta de informação. Nada a estranhar, já que o Brasil fica na ‘lanterna’ no quesito educação sexual nas escolas, segundo um estudo da Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF) de 2017.
ACEITAÇÃO
A descoberta da transexualidade traz para o indivíduo inúmeros desafios. O primeiro deles é o de compreender a condição na qual se encontra e aceitar as adversidades que se apresentarão no futuro. Mais do que ser aceito por aqueles que o cercam, é preciso aceitar-se. A vida de homens e mulheres trans brasileiros se mostra ainda mais complexa do que a dos demais integrantes da comunidade LGBT+ porque pouco se sabe a respeito da disforia de gênero, frequentemente confundida com orientação sexual.
A transição de gênero é um processo de mudança psicológica, física e emocional. O indivíduo trans passa por diversas etapas que envolvem a autoaceitação, a revelação da condição dentro do convívio social, o acompanhamento psicológico/psiquiátrico, o tratamento hormonal e, finalmente, a intervenção cirúrgica, que não é obrigatória. Há casos nos quais a transição é interrompida antes do procedimento, seja por vontade do paciente ou por recomendação médica.
É na fase psicológica que os trans encontram as maiores barreiras, uma vez que esta envolve não somente aceitação individual, mas também mudanças nas relações pessoais. Não se identificar com o próprio corpo pode trazer conflitos internos que não serão resolvidos sem suporte profissional.
A autoaceitação é a parte mais complexa do processo. Thais conta que não sabia como expressar o que sentia durante esse período. “Eu tenho lembranças desde pequena de pessoas impondo como eu deveria agir, me dizendo que eu não poderia chorar e na infância a gente não compreende que o errado da história é ele, não você. Eu internalizei muita coisa e, ao mesmo tempo, como a gente pode expressar algo se não conhecemos as palavras?”
Para Erica Prieto, 27, as reações externas afetam diretamente a forma como ela se vê. “É um processo contínuo. A sociedade está constantemente me dizendo que eu não sou uma mulher e nunca serei. Há dias nos quais não duvido do que sou, outras vezes não me sinto tão segura. Em compensação, as outras pessoas, a partir do momento em que me conhecem e me aceitam, não questionam mais. Por isso eu acho que a autoaceitação é pior, ela nunca acaba” diz.
Passado o choque inicial, a próxima fase envolve revelar sua identidade àqueles que o cercam, algo que demanda uma grande carga emocional. Thais fala sobre como passou a enxergar em suas amizades masculinas problemas que antes eram imperceptíveis. “Eu tive amigos me dizendo: ‘Eu entendo você porque eu sou bissexual’ e não tem nada a ver. Além de coisas do machismo em si. Quando comecei a transicionar, aumentou o mansplaining, como se meu QI tivesse caído 50 pontos no momento em que eu me aceitei como mulher”.
Para além das relações sociais, a postura da família é normalmente negativa. Muitas vezes surge a preocupação, pois mesmo que a família não se oponha à condição, existe o temor pelo perigo nas ruas e no convívio social. Elizabeth Barros, 23, trabalha como analista de atendimento. Para ela, a revelação e a mudança foram positivas. “Minha relação com minha mãe e minhas duas irmãs sempre foi ótima, então, elas me abraçaram, em todos os aspectos possíveis. Eu reconheço que nesse quesito fui e sou muito felizarda”, comemora.
Também a família da estudante de Publicidade e Propaganda Victoria Lisboa, 24, agiu com ternura ao perceber o processo pelo qual estava passando.
O Dr. Ronaldo Pamplona dedicou grande parte de sua carreira ao estudo da transexualidade. É médico psiquiatra, sexólogo e psicoterapeuta e oferece suporte profissional a pacientes em diferentes estágios da transição. Ele afirma que a aceitação familiar é a chave para uma transição mais tranquila e digna para o paciente. O ideal é que a família não veja a condição como um problema ou até mesmo uma doença. “Há pessoas que contam com total apoio, são acompanhadas nas consultas, ajudadas e aceitas. Nesses casos os familiares passam a representar um aspecto positivo”. Mas há também os casos em que a família não aceita a condição e só percebe que o filho ou filha estão na transição quando as transformações hormonais ou comportamentais se tornam aparentes.
O profissional responsável pelo suporte precisa desenvolver um trabalho de aprofundamento psicológico e buscar compreender a natureza do paciente. A consulta é utilizada como forma de investigação sobre o gênero, os conflitos e as limitações sociais do indivíduo. “O objetivo é determinar se é necessária a terapia. É possível que eu esteja lidando com alguém que possui um distúrbio mental, no qual acredita que pertence ao gênero oposto, como a esquizofrenia. Na terapia, o paciente deve se comportar como a pessoa que sente ser”.
Quando falei para a minha família, eles não entenderam, apesar de eu sempre ter dado indícios. Hoje eles se fazem de cegos, e não dão nenhum suporte nesse sentido” declara Rafael França.
Uma das maiores objeções pode surgir após a revelação para a família. Isso porque, além da possibilidade de não ser aceito, muitas vezes parentes tentam esconder a condição daqueles que fazem parte do convívio social, como amigos mais próximos. Esse empecilho prejudica o processo psicológico, pois além da rejeição por parte da família ainda é necessário lidar com o acobertamento de sua real identidade, que é escondida por parentes por ser considerada motivo de constrangimento.
APOIO PSICOLÓGICO
O suporte psicológico e psiquiátrico consiste em acompanhamento e é adotado como pré-tratamento para a cirurgia de redesignação sexual, se assim o paciente desejar. “No Hospital das Clínicas (na cidade de São Paulo), existe o Centro de Assistência das Pessoas Trans. Para um pré-atendimento, eles buscam entender se a pessoa é ‘trans verdadeira’. Se for trans, vai para a lista de espera da cirurgia”, explica Thais Robba.
“Eu já ouvi pessoas dizendo que transexuais têm dismorfia, mas dismorfia e disforia são coisas diferentes. Dismorfia é você não se enxergar como é, como alguém que tem anorexia, por exemplo. Na disforia é o contrário, você se vê como é, porém, não sente que aquela imagem se compatibiliza com quem você é de verdade”, afirma Thais Robba.
A partir do momento em que a decisão é tomada, a angústia de passar por uma etapa que nem sequer é debatida pela sociedade torna-se para muitos um pesadelo. Além da terapia de dois anos, estabelecida como obrigatória pelo Ministério da Saúde, a cirurgia de redesignação sexual pode custar até R$ 45 mil.
Há 10 anos a cirurgia foi regulamentada no Sistema Único de Saúde (SUS), contudo, faltam assistência e estrutura, já que há poucos hospitais credenciados para o procedimento, em geral, localizados somente nas grandes capitais do país. O que era um sonho se torna uma luta de anos incansáveis, e no fim o objetivo pode nem mesmo ser alcançado.
Segundo dados do Ministério da Saúde, a fila tem até cinco anos de espera, com a meta estabelecida em uma cirurgia ao mês, havendo pacientes agendados até 2020. A cirurgia dura em média três horas, e a recuperação pode levar até 4 meses.
Para o cirurgião especialista em transexualidade Matheus Manica, os cuidados pós-operatórios são fundamentais para o êxito do processo. “O ideal é que seja feito um acompanhamento psicológico de manutenção. Às vezes, até para aqueles pacientes que recebem alta, recomendo que voltem, para lidar com as novas questões que vão surgir durante a recuperação. Para mulheres, o que acontece é o acompanhamento ginecológico e, em geral, o aprimoramento estético”.
Ao avançar pelas etapas da transição, pacientes que optam por mudanças físicas tendem a acobertar o seu passado, seja por problemas de rejeição familiar, corporal ou existencial. Tal comportamento é comum, devido principalmente a possíveis traumas relacionados ao período anterior à revelação da transexualidade.
Entre os muitos casos que acompanhou, o médico Ronaldo Pamplona lembra-se de um em especial, o de uma jovem que, mesmo após iniciar a transição, sentia-se confrontada com a existência de uma cicatriz em seu pulso esquerdo. Tal marca tinha conexão direta com suas memórias de vida como homem, algo que desejava esquecer completamente. Havia, porém, um grande risco na remoção da cicatriz, que se localizava perigosamente perto de uma de suas veias cardíacas. Seu transtorno fez com que buscasse profissionais dispostos a realizar a cirurgia e, quando finalmente encontrou, foi vítima de seu trauma, morrendo em decorrência do procedimento.
CONVÍVIO SOCIAL
Atividades como ir ao banco, fazer compras ou frequentar locais que exijam a apresentação de documentos é quase sempre um fardo para os trans. Fora da convivência mais íntima, as pessoas ainda não sabem como tratar uma pessoa da comunidade. Muitas vezes, cometem o erro, intencional ou não, a chamam pelo nome que possuía anteriormente, por exemplo.
“Mesmo depois de um ano de terapia hormonal, as pessoas ainda me tratam errado e me olham dos pés à cabeça quando digo meu nome. E, quando mostro meus documentos, já retificados, checam mil vezes para ter certeza de que eu sou mesmo um homem. É constrangedor”, desabafa Alex.
Elizabeth, com seus longos cabelos pretos, conta que nas ruas sempre foi vítima da passabilidade, que, no fim das contas, acabou por beneficiá-la. “Eu percebi a mudança no olhar das pessoas, mas, mesmo antes da transição, sempre fui afeminada. Então, não foi uma mudança radical, apenas adicionei roupas e outros acessórios. A passabilidade se tornou um fator facilitador para mim.”
Em observações feitas nas ruas, é sempre notável o grande grau de preconceito que é expresso na passabilidade. Para provocar ou chatear o indivíduo, frases gritadas em alto e bom som, como ”É homem ou mulher isso?”, podem ser ouvidas e também classificadas como preconceito e transfobia genuína.
Membros do T da sigla LGBT+, geralmente, não gostam de ser reconhecidos como pessoas cisgênero, já que essa atitude desmerece o valor da luta travada no decorrer da vida para se firmarem como indivíduos. E a passabilidade se torna ainda pior quando relacionada à conquista amorosa: muitos pretendentes ao descobrirem que a pessoa é transgênero, abandonam o possível parceiro.
RELACIONAMENTOS
Nas redes sociais, responsáveis hoje por inúmeros relacionamentos, nem sempre os interlocutores conhecem a verdadeira identidade uns dos outros. Mas, para aqueles que fazem parte do grupo cisgênero, esse desconhecimento pode se restringir apenas à etapa inicial da relação.
Para transexuais, no entanto, o “problema” se torna muito maior. Quando conseguem marcar o primeiro encontro, em geral, precisam esconder o que são, pois, se não contaram através das trocas de mensagens que fizeram uma transição, podem cair novamente no conceito de passabilidade.
Em casos extremos, depois dos primeiros encontros, é preciso revelar a condição de ser trans. É nesse momento que tudo começa a se complicar, e questões como rejeição e objetificação sexual surgem. Luiza diz que a objetificação é algo bastante complicado por tirar, quase totalmente, o valor sentimental de quem não quer apenas sexo, mas também deseja alguém para se relacionar. “Eu já estive em dois relacionamentos e nunca tive problemas, apesar de ser um pouco complicado. A partir do momento em que você fala pro cara que é trans, ele acaba vendo mais o físico do que o que você é de verdade ou o que você tem”.
Ao mesmo tempo, há casos nos quais a relação resiste à transição. Thais é casada há três anos e lembra que a descoberta da transexualidade não destruiu a união, pelo contrário, só a fez crescer. “Pâmela foi compreensiva e tem contribuído com o processo positivamente. Foi muito importante receber o apoio dela. Nós estamos passando por tudo juntas e com certeza isso fortaleceu nosso casamento”.
Esse também foi o caso de Érica, casada desde setembro deste ano com Amanda, uma mulher cis. A programadora afirma que nunca teve nenhum problema em relação a essa questão e acrescenta que é muito feliz com a pessoa que ama.
Para Rafael, a mudança de gênero foi um divisor de águas. Ao descobrir a identidade verdadeira do parceiro, sua ex-namorada terminou a relação. Atualmente ele está em um relacionamento a distância.
PRECONCEITO
Como os demais membros da comunidade LGBT+, homens e mulheres trans vivem com a ameaça constante de ataques transfóbicos e crimes de ódio, motivados acima de tudo pela ignorância.
O conceito de transexualidade ainda é pouco discutido, principalmente nas escolas brasileiras. A sociedade em geral desconhece as características do trans e não compreende sua natureza imutável. O desconhecimento resulta em preconceito, discriminação e, consequentemente, violência verbal e muitas vezes física. “Eu sou penalizada em tudo! Não é gostoso ser transexual, são remédios (hormônios), terapias, operações e preconceito. Vivemos com medicamentos por toda a vida, mutilamos o nosso corpo. O problema é a rejeição, a falta de oportunidade, a exclusão na sociedade. Nós temos os nosso direitos negados”, relata Vitória.
Os maiores problemas que a comunidade trans enfrenta no Brasil são, para Thais, o julgamento e a indiferença. “As pessoas esquecem que somos seres humanos. Sempre julgam a gente pela imagem da pessoa trans ou cis que é passada pro mundo”.
Rafael, que vive que em Portugal, conta que as situações não são diferentes em outro país. “Existe preconceito existe em todo lugar do mundo. Eu diria que em Lisboa o problema é que o preconceito é acompanhado pela falta de respeito, no tocante a olhares e perguntas invasivas”.
Segundo um levantamento da ONG europeia Transgender Europe (TGEu), feito em novembro de 2016, o Brasil é líder no ranking dos países que mais matam transexuais e LGBT+ no mundo. Cerca de 179 pessoas transexuais foram assassinadas no Brasil em 2017, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) – um aumento de 15% em relação às mortes de 2016. Em 94% dos casos de assassinatos, as vítimas eram mulheres entre 16 e 29 anos. A expectativa de vida das pessoas trans é de 35 anos, de acordo com a Agência Senado.
Contrastando essa estatística, uma matéria publicada no site da Revista Superinteressante, em 2016, revela que o Brasil é o país que mais procura o termo “transexual” em sites de pornografia, como RedTube, portal de vídeos que cedeu dados para a reportagem. “O brasileiro tem muito essa coisa de ‘pra inglês ver’ e reprime seus desejos para se encaixar no padrão pré-estabelecido. Essa é a nossa natureza. Temos vontades e algumas pessoas escolhem satisfazê-las ocultamente”, analisa Marcela Bruggemann.
A agressão nem sempre é física. Muitas vezes, é psicológica ou verbal, podendo se apresentar gradativamente: de comentários preconceituosos, que são vistos como piadas por aqueles que não compreendem a dor dos que são atingidos por tal atitude, a ofensas diretas.
Thais passou por essa experiência em seu último emprego. “Meu gestor debochou da minha roupa quando ainda não sabia que eu estava transicionando. E pessoas machistas, no momento em que perceberam que eu estava nesse processo, passaram a me odiar”.
Quando vítimas de agressão, pessoas trans ainda precisam lidar com o descaso dentro das delegacias. Na maioria das vezes, as denúncias são ignoradas e, se a vítima insiste em reportar o crime pessoalmente, a situação é banalizada pelos profissionais que deveriam amparar os cidadãos de forma imparcial e igualitária, conforme prevê a lei.
Luiza foi vítima de transfobia em um shopping onde passeava com sua mãe. Em uma loja, a atendente começou a rir de sua aparência. ”Eu retruquei. Aí ela e outras vieram pra cima de mim e da minha mãe. Acabamos na delegacia. Mas eles não levaram a sério e dispensaram todos os envolvidos”.
Lidar com a discriminação é doloroso e muitas vezes complicado. Se para as pessoas cis existe o temor de ser assaltado ou morto por causa das coisas que porta, para os trans o medo de perder a vida se deve ao fato de pura e simplesmente não se encaixar nos padrões pré-estabelecidos pela sociedade.
As formas de enfrentar o preconceito e os ataques variam. Para Rafael, a solução é cantar. “Eu canto muito, eu tento gastar a minha energia com algo positivo. Eu faço uma auto-avaliação que foi o julgado, eu tento entender e crescer em cima daquela mensagem. Tem críticas que são construtivas né? Sempre tento entender o lado da pessoa que propaga o ódio, eu passei muito tempo com raiva das pessoas, mas sabe depois você pensa quem é que sofre mais? Eu ou a pessoa que me ofendeu que vive oprimido?”.
MOVIMENTOS SOCIAIS
Além dos obstáculos impostos pela sociedade, existem barreiras nos movimentos sociais. A rejeição que mulheres trans sofrem em vertentes do movimento feminista dificulta a integração. Considerando que a homossexualidade vem sendo discutida há muito tempo e, apesar da discriminação ainda existente, é vista como algo mais comum, transexuais enfrentam desafios que são ignorados por outros membros.
No movimento feminista existe uma vertente chamada Rad Fem (em português, Feminismo Radical). Segundo essa linha de pensamento, uma mulher só é mulher de verdade quando nasce com sexo feminino biológico. “Não é um feminismo interseccional ou inclusivo. São as mesmas mulheres brancas que vão excluir mulheres negras ou com autismo. Isso é não enxergar como as coisas estão relacionadas. A não-intersexualidade do feminismo machuca todo mundo que não é se encaixa no status quo”, afirma Thais Robba.
Para grupos extremistas como as Rad Fem, mulheres trans usufruem os privilégios reservados aos homens, por isso não são aceitas. Não se considera que essas mulheres tiveram de lidar com o isolamento, o desamparo e o medo de revelar-se. Isso as priva de viver uma infância e adolescência "normais" e afeta o desenvolvimento de seus corpos, algo que no futuro dificulta o processo de transição. “Agora, acabei de sair de um grupo privilegiado para entrar no maior alvo de violência no Brasil. Essa visão de exclusão só reforça os sistemas patriarcais, porque eu já comecei a ouvir: ‘se você está em transição, tem que ir a fonoaudióloga’ ou ‘você não pode ter pêlos no corpo’. O feminismo não é justamente sobre você não ter que ser como dizem e não seguir os padrões impostos por uma sociedade machista?”, questiona Victoria.
Em conjunto da circulação monetária, a partir de 2016 houve aumento no mercado de Influenciadores Digitais, que muita das vezes, se aproveitam da causa para ganhar visibilidade e retorno financeiro. Assim como as corporações, criadores de conteúdo tem focado nessa parcela da sociedade, principalmente com a evolução desse público e do dinheiro investido por eles.
"Não me sinto representado pela sociedade porque infelizmente a questão da transexualidade está sendo vista como uma porta para ganhar dinheiro, as pessoas não estão lutando como se deve, estão apenas se aproveitando de um assunto para lucrar e ter visualização", explica Alexandre Porfirio.
A homofobia é uma violação dos direitos humanos, revelando um comportamento discriminatório. Mas a legislação brasileira não a tipifica como delito, e o projeto de lei 122/06, que prevê a criminalização, segue arquivado no Senado oito anos após a sua criação. Com respeito especificamente à transfobia, não existe um projeto de lei que preveja punição ao indivíduo que ataca pessoas transexuais verbal ou fisicamente.
Como um antídoto à omissão do estado, as ferramentas tecnológicas têm ajudado homens e mulheres transexuais a se defenderem por meio da cooperação mútua e do compartilhamento de informações importantes, que muitas vezes salvam vidas. Há registro de perfis utilizados para alertar acerca de áreas de risco, como o Ele Não Vai Nos Matar no Instagram (@elenaovainosmatar), que facilitam o deslocamento rápido quando necessário.
Além disso, grupos em redes sociais como o Facebook promovem o colaborativismo relacionado a oportunidades de trabalho e acolhimento. Nesses grupos, membros das minorias unem-se em favor de um objetivo comum: combater a falta de oportunidades e a solidão que penalizam as pessoas trans, assim como os demais integrantes da comunidade LGBT+.
MERCADO DE TRABALHO
Atualmente no Brasil, não existem dados estatísticos quanto ao número de transexuais empregados no mercado de trabalho formal. Devido à exclusão social e a falta de oportunidade, a grande maioria é marginalizada, o que os torna altamente vulneráveis. Para mudar esse quadro, estão sendo feitos projetos de empregabilidade nas empresas, auxiliando no processo de contratação com palestras, cursos e consultorias.
No Estado de São Paulo, a transexualidade começou a ser tratada como uma pauta política em 2015, na gestão do então prefeito Fernando Haddad. Atualmente existem três projetos: Transcidadania, Transempregos e o Fórum de empresas LGBT, que providenciam a ajuda necessária entre empresa e transgêneros.
A maior queixa feita por pessoas da comunidade T em seu processo de transição além da aceitação, é ser inserido no mercado de trabalho. A grande maioria investe em cursos profissionalizantes e ingressam no mercado de trabalho como autônomos ou participantes de programas sociais.
“Tem um coletivo de programadoras do qual eu faço parte que se chama “Codando Juntas” que tem como objetivo ajudar mulheres trans e cis a se inserir no mercado de trabalho. Tem também o Gender Minorities in Game Development para pessoas que querem trabalhar com jogos, mas podem ser não-binárias, trans, ou mesmo mulheres, a ideia é que não sejam homens hétero cis brancos, somente minorias“ explica Thais, programadora de jogos eletrônicos.
Mesmo com todas as conquistas e oportunidades surgindo diariamente no mundo profissional, segundo dados da ONG Transgender Europe, 90% dos transexuais que passam pela cirurgia e troca de documentos, não possuem carteira assinada. E segundo dados da ANTRA, por não conseguirem o emprego desejado, 90% dos indivíduos transexuais vivem unicamente da prostituição.
Luiza não teve muita escolha depois de sua transição e trabalha como acompanhante. No tempo livre trabalha na área estética, como maquiadora. “O mercado de trabalho é bem ruim, eu acho. Apesar de eu ter trabalhado de carteira assinada, eles não te dão oportunidade. Tem muita coisa pra melhorar ainda” afirma.
Já Rafael, que se mudou para Lisboa em busca de uma nova perspectiva, atualmente trabalha com sua tia em um SPA e aos finais de semana, sempre que possível adequa seus horários à sua carreira musical, tocando em bares locais.
As empresas no Brasil estão cada vez mais adquirindo os projetos de empregabilidade transexual e atualmente podemos encontrar vagas em redes como Carrefour, Dell e Sodexo. O Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), também se uniram em prol de criar novos cursos profissionalizantes para transexuais em situação de vulnerabilidade. Em suas duas edições, cerca de 70% de alunos e alunas foram encaminhados para empresas.
Em junho, mês da diversidade, grandes marcas como Burger King, Trident, C&A, Quem Disse Berenice, Skol e outras empresas utilizam a causa para se autopromover. O mercado LGBT+ lucra US$ 100 bilhões de dólares por ano no Brasil de acordo com a Out Leadership.
“O mercado já foi muito fechado pra pessoas trans, mas agora estamos num momento de aumento de visibilidade. Temos o programa Transempregos, que divulga vagas exclusivas para o público transgênero. Além disso, há o interesse de algumas empresas em adotar a diversidade em seu meio. Tudo isso é ótimo!”, afirma Elizabeth Barros, que trabalha como analista de atendimento.
FUTURO
Para saber o que é, de fato, ser um membro da comunidade T, é necessário, antes de tudo, ser um deles e, em segundo lugar, experimentar na própria pele as dificuldades impostas todos os dias pela sociedade que mais mata transexuais no mundo.
Há pouca representatividade política trans, principalmente no Congresso Nacional. Na comunidade LGBT+, o deputado Jean Wyllis (PSOL) pode ser considerado um representante da letra G da comunidade, mas e quanto ao T?
Nas eleições de 2018, o estado de São Paulo elegeu sua primeira deputada transgênero, Erica Malunguinho da Silva (PSOL), membro da bancada ativista na Assembleia Legislativa de São Paulo. Para as pessoas trans, esse é apenas o começo.
O fotógrafo Alex cita, como os outros entrevistados, medidas nas quais investiria, se ocupasse um cargo político, para criar um Brasil mais justo para os transexuais. “Primeiramente, eu iria me preocupar com a saúde das pessoas trans, que são muito ignoradas nesse sentido. Procuraria também buscar melhorias na educação e no mercado de trabalho”.
As questões trabalhistas seriam o foco de Luiza Nogueira como candidata. "Acho que mudaria a parte do emprego para as pessoas terem opções dignas. Não estou dizendo que a prostituição seja uma profissão indigna, mas que é preciso abrir opções, para não sobrar só sexo como alternativa”.
Até mesmo os anseios mais íntimos dos trans envolvem sonhos coletivos. Há algumas semanas, o melhor amigo de Rafael França postou um vídeo gravado logo após a cirurgia de mastectomia, quando ele estava acordando. O vídeo mostra sua reação diante da mudança drástica em seu corpo e o momento é testemunhado por seus amigos mais próximos. Rafael chorou ao ver o resultado e sua história emocionou mais de 300 mil pessoas, que compartilharam o vídeo na rede social Twitter. “Meu maior sonho, depois de ver como meu vídeo viralizou, é conseguir incentivar as pessoas a continuarem essa jornada que estou percorrendo”.
Direitos civis, trabalho digno, aceitação social e espaço para livre expressão. São bandeiras de luta e também visão de futuro. “Uma sociedade com mais igualdade, mais justa com todos. Por que a sexualidade tem de ser impedimento para isso?”, pergunta-se Marcela Bruggeman. Por quê? Devemos perguntar a nós mesmos.
Rafael, 27 (Reprodução/Instagram)
A transexualidade deixou de ser patologia na Classificação Internacional de Doenças (CID-11) da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1990, porém há particularidades que permanecem. De acordo com a Resolução 1955/2010 do Conselho Federal de Medicina (CFM), há doença mental na transexualidade se o paciente transexual for “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio”.
VICTORIA


RAFAEL

ALEXANDRE

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VICTORIA

ALEX

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MARCELA

LUIZA
DISFORIA
X
DISFORMIA
Entenda as diferenças
DISFORIA
A Disforia de gênero é um transtorno psicológico caracterizado pelo inconformidade sentida com relação ao sexo biológico e o anseio por pertencer ao gênero oposto.
dISFORMIA
Já a disformia é um termo usado para diferenciar aquilo que a pessoa acredita ser e o que realmente é. Ou seja, a dismorfia corporal é um transtorno psicológico em que a pessoa acredita ter defeitos físicos que não possui.

PING PONG
Franklin Felix

ativista social pelos direitos humanos e radialista, fala sobre sua experiência e envolvimento com a causa trans no Brasil.
Ronaldo Pamplona

Eu comecei a atender transexuais nos anos 90. Quando lancei a primeira edição do meu livro em 1994, muitos transexuais me procuraram para uma consulta, depois que leram, pois na época não era retratado na mídia a respeito.
Matheus
Manica

O apoio da família é essencial, não só pensando no lado da cirurgia. É super importante que os pacientes tenham esse apoio na transição, para que ela não se torne dura.
Segundo o dicionário Aurélio,
a palavra Transexual significa: relativo a transexualismo, que ou quem tem um sentimento de pertencer a um sexo com que não nasceu, cujas características físicas deseja possuir ou já possui através de meios médico-cirúrgicos.
O termo “Transexualismo”
foi utilizado por muitos anos para descrever a condição da disforia de gênero. Foi empregado pela primeira vez nos anos 20 pelo sexólogo e ativista alemão Magnus Hirschfeld e posteriormente por outro sexólogo alemão, Dr. Harry Benjamin, pioneiro no trabalho com pessoas transexuais.
Nos primórdios dos estudos sobre a transexualidade,
havia a crença de que a condição se tratava de um transtorno psicológico. Por esse motivo seu nome levava o sufixo “ismo”, que entre muitas definições remete à doença baseada em comportamento. Com o passar dos anos e o avanço das pesquisas na área, foi determinado que o sufixo fosse substituído por “dade”, que significa “modo de ser”.
Com uma longa história de luta pelos direitos dos LGBT+, Franklin Felix, 37, foi um dos precursores do Transcidadania, projeto da prefeitura da cidade de São Paulo que visa reintegrar homens e mulheres transexuais no mercado de trabalho através da finalização dos estudos e de cursos técnicos. À redação do Correio, ele conta sobre as maiores barreiras impostas à comunidade T brasileira e quais as medidas a serem tomadas para mudar esse quadro.
Correio Braziliense: Como você enxerga os desafios enfrentados pelas pessoas trans?
Franklin Felix: Vejo em especial a questão da violência. A expulsão de casa, dos núcleos familiares, da escola e das comunidades de fé. Com a população trans, o que há de mais sério é que a expectativa de vida, que é de 35 anos, pois muitos morrem em virtude da violência, e 95 % das mulheres trans se prostituem por não conseguirem outro emprego.
CB: Quais são os problemas mais recorrentes?
FF: São aqueles relacionados ao mercado de trabalho, justamente porque essa população tem pouco acesso à educação técnica e superior.
CB: Como funcionava seu acompanhamento no Transcidadania?
FF: Eu fui convidado para criar o Programa de Direitos Humanos e Cidadania para um projeto chamado “Transcidadania”, que é voltado para a população de travestis, mulheres e homens transexuais. Os beneficiários recebem uma bolsa de estudos para voltar à escola para ensinos fundamental ou médio, além do acompanhamento através do curso de Direitos Humanos e Cidadania e cursos técnicos. Há também a oferta de condições de autonomia financeira através da transferência de renda, que além de ser destinada à execução de atividades relacionadas à conclusão da escolaridade básica, também contribui para a preparação para o mundo do trabalho e formação profissional.
CB: Como você chegou ao encontro dessas pessoas (Trans)?
FF: Eu sempre atuei em núcleos LGBT, em especial dentro do Conselho Regional de Psicologia. Fui um dos criadores do Núcleo de Sexualidade e Gênero, criado para acompanhar as pautas da população LGBT e a relação com a Psicologia. O objetivo é o de abordar questões como nome social, a chamada “cura gay” entre outras. Com relação à população trans especificamente, o núcleo se dedicava à despatologização das identidades trans, que era uma das nossas bandeiras de luta.
CB: Você ainda atua na causa LGBT+ mesmo fora do Transcidadania. Como se sente ajudando essas pessoas?
FF: Mesmo não estando mais ligado ao programa “Transcidadania”, ainda continuo articulando e fazendo parte de coletivos que atuam com a população de travestis e transexuais. O que me marcou na época do programa foram as histórias das meninas e as violências recorrentes a que elas eram submetidas.
CB: Você é procurado por muitas pessoas?
FF: Sim, principalmente por estar diretamente ligado à causa LGBTQI+. Como ativista é importante estar sempre acessível, para que as pessoas que precisam de ajuda possam dividir suas histórias conosco.
CB: Há alguma história em especial que o impactou?
FF: Um dia, ao chegar para o curso uma das meninas foi agredida com um pedaço de pau pelo porteiro do prédio e fizemos o boletim de ocorrência. Em vez de tomar uma providência contra a agressão do porteiro, a empresa de segurança queria tirar
o curso de lá. Foi ali que eu percebi e senti o preconceito que a população LGBT sofre todos os dias.
CB: Você usa seu programa de rádio para orientar pessoas trans e cis?
FF: Nos disponibilizamos para criar ações afirmativas e darmos visibilidade, tanto às ações positivas como às denúncias das opressões que sofrem.
CB: A página “Espiritismo e Direitos Humanos”, oriunda de seu programa de rádio, tem um enfoque político. Você usa esse espaço para discutir a causa LGBT?
FF: A página é de militância porque acreditamos que é assim que se faz política. Nós estamos ao lado dos excluídos e marginalizados, das pessoas que sofrem todos os tipos de violência. Sou um homem cis que faz a pauta, mas acho sempre interessante ouvir delas mesmas seus desejos.
CB: Você tem algum conselho para as pessoas que buscam se inserir no universo trans ou estão se aceitando como parte dele?
FF: Tenho algumas dicas que podem deixar as pessoas mais seguras. Tente fazer parte de coletivos, que são grupos que trazem o empoderamento e contribuem para a auto-aceitação. Também vá atrás dos seus direitos e conheça-os, especialmente os relacionados ao uso do nome social, ao uso de banheiros e os trabalhistas. Lute para ter protagonismo e voz ativa.
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